sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Cá está uma historia escrita pelo meu grande ajudante e amigo Samuel Rocha :)

            4 de novembro de 2005 – 14h30
           
            -Não aguento mais, Bruno!
            -Lamento imenso, mas não há mais nada que possamos fazer. Sei perfeitamente que a vida está difícil para todos, mas neste tipo de situações, a caridade torna-se menos relevante e a pobreza flutua como uma singela pétala flutuando no oceano, sem nada que a derrube. Tenho pena, Marta, mas não podemos continuar a tolerar esta situação.
            O sangue começava a fervilhar e todos os maus pensamentos cobriam agora esta mente assombrada e indefesa. Em câmara lenta, a mão esquerda desta mãe direccionava-se ao bolso da parte de trás das calças, enquanto que a outra servia de arma imaginária, apontada ao rosto do jovem funcionário da sucursal bancária, que ia proclamando poesia à medida que falava com Marta.
            A tensão anunciava-se forte naquele instante. Bastava um gesto, um simples gesto, para que tudo o que até ali fora construído, desaparecesse por completo. Os olhares cruzavam-se como flechas. As vozes, retraídas pelo receio, mantinham-se guardadas no abismo.
            -Marta, tente acalmar-se. Eu conheço a sua situação e sei exactamente pelo que está a passar. Pense no seu filho. Será que quer que o seu filho veja a mãe como uma assassina? Quer deixar o seu filho ao abandono, sem dar luta? Tenha calma, Marta.
            -Sem dar luta?! Você pensa que eu tenho estado fechada em casa, a ver televisão ou a jogar cartas? Sem dar luta?! Não tenho feito outra coisa senão lutar pela felicidade do meu filho, mas ao que parece, as minhas forças não são suficientes. Não é você que não tem nada no frigorífico durante dias a fio. Não é o senhor administrador que se vê obrigado a prostituir-se para que o seu filho sorria a cada dia que passa. Não é você que acorda a chorar e se deita sem mais lágrimas. A minha alma está seca, completamente destruída! E ainda me pede luta? Eu só não me mato agora mesmo, porque o meu filho precisa de alguém para cuidar dele, já que o anormal do pai decidiu deixar-me sozinha... a lutar. E ainda me pede luta, Bruno? Nenhum de vocês aqui presentes sabe o que é lutar. Vocês julgam sabê-lo, mas a verdade é que as vossas vidas são de tal forma confortáveis que nunca vos deram a possibilidade de sofrer por vocês e pelos que vos rodeiam.
            As lágrimas e os gaguejos faziam-se agora ver. De joelhos, Marta continuava a súplica:
            -O meu Rui não tem nada para comer. Ele... ele não tem culpa da mãe que tem. Ele não tem culpa da mãe que tem!!! – gritou, dirigindo-se à porta da sucursal.
           
            15h45

            O corpo já pouco reagia aos estímulos provocados pelos fortes raios de Sol que se faziam sentir. O olhar, fixando a areia, era o espelho do precipício. Marta não tinha nada. Nem dinheiro. Nem saúde mental. Nem vontade de viver. Apenas o filho.
            O cenário paradisíaco não a apaziguava. Casa penhorada e vida na rua fariam parte do seu destino, um destino do qual o seu filho fazia parte.
            Com dez minutos de caminhada, Marta parou inconscientemente. Olhando para trás, reparou que as suas pegadas eram as únicas que deformavam as ondulações naturais do areal. O trajecto era idêntico ao trajecto da sua vida: longo, sinuoso e sem início preciso. Marta sentiu, naquele instante, que aquele era o ponto final da sua vida. Tudo correu mal. Porque haveriam as coisas de mudar?
            Do bolso, retirou uma foto de Rui e olhou atentamente para a mesma. Aquele sorriso contagioso fê-la sorrir.
            Foi com esse sorriso marcante na sua mente que desatou a correr em direcção ao mar, robusto por sinal, sem vontade de voltar à última pegada do trajeto que havia construído momentos antes. Os seus cabelos voavam à medida que as ondas batiam na areia molhada. A água, gélida, cobria-a agora até aos joelhos. Tropeçando na força da água, Marta bateu com a cabeça no mar violento e impiedoso. O silêncio chegara.

            10 de novembro de 2005 – 21h20

            Rui estava encostado a um muro, o muro de uma casa abandonada e em ruínas. Acanhado, ia olhando à sua volta, lembrando alguém com receio da presença humana. O sofrimento estava estampado na sua face, magra e sem expressão. Rui, a noite e quem estava “dentro” da casa desmoronada eram os únicos actores da vida naquela rua sombria.
            Um mendigo, ainda que bem vestido, aproximava-se de Rui, que tremia agora desalmadamente. O medo era evidente.
            -Olá. – disse o sem-abrigo num tom sorridente.
            -Não tenho nada para lhe dar. – respondeu Rui, ingenuamente.
            -Não quero nada de ti. Gostava apenas de saber porque estás aqui sozinho. Os teus pais?
            O filho de Marta, sem saber o que dizer, virou costas à intimidante figura que se mantinha à sua frente. Um toque no ombro seguiu-se e Rui não hesitou em virar-se, estimulado, mais uma vez, pelo receio.
            -Como é que te chamas?
            -Rui. – respondeu, hesitante.
            -Muito bem. E o que fazes aqui? Podes contar-me. Eu posso ajudar-te. Estás perdido?
            -Não.
            Alguns segundos passaram até que o menino interveio novamente:
            -Baixe-se. – pediu – Baixe-se!
            O mendigo seguiu o pedido. Num tom relativamente baixo, Rui continuou:
            -A minha mãe está ali dentro com um homem. Temos vindo para aqui todos os dias desde que ela voltou para casa de uma viagem que fez. Não entendo porque é que temos de vir, mas ela diz que não me pode deixar em casa sozinho, porque é perigoso. Eu fico sempre aqui neste sítio, com medo. Ela não me deixa ver o que eles estão a fazer. Mas não lhe conte o que eu lhe disse, está bem?
            O sem-abrigo manteve-se com a mesma expressão com que chegara, como se já soubesse o que se passava.
            -Não te preocupes. Eu não lhe digo nada. – pausou – Se eu te pedir uma coisa, confias em mim?
            -Sim.
            -Vamos deixar um papel aqui no sítio onde estavas para que a tua mãe saiba que vieste para minha casa. Depois vai lá buscar-te e vão para vossa casa. Pode ser?
            -Tu tens casa?

            23h00

            A campaínha tocou. Rui veio à porta, entusiasmado, para descobrir de quem se tratava. Era Marta.
            -Filho! O que é que se passou?
            -Mãe, entra. Há um senhor que quer falar contigo.
            Marta entrou, duvidando do que se estava a passar. Repentinamente, o mendigo, já transformado, entrou na sala. Era Bruno.
            -Marta, não vou deixar-te continuar com isto. Tentas matar-te e ainda levas o teu filho para o mundo da prostituição? Não me tinhas dito que estavas a lutar por uma vida melhor? Achas que é a melhor forma de fazê-lo? Olha para ele, Marta! – disse, apontando para o pequeno Rui – Olha, Marta! Achas que ele merece estar ao relento enquanto tu te vendes a preço de ouro? E a tua dignidade? E as memórias que ele guardará para sempre? Vais parar com isto! Vais parar com isto imediatamente! Se tens amor próprio, vais terminar já com este inferno!
            Marta sentou-se no sofá, desamparada.
            -Vais ficar aqui a dormir até organizares a tua vida. Sim, porque isto que tu levas não é vida. É um tormento, tanto para ti como para o teu filho. Vais portanto começar de novo. Eu estou aqui para te ajudar no que for preciso, não como administrador de um banco, mas como amigo. Deixa-me ajudar-te...

            17 de agosto de 2006

            -Mãe, estás mais bonita do que nunca!
            Marta sorriu. Não era um sorriso sofredor, mas algo verdadeiro. Finalmente um sorriso sentido.
            A igreja estava pronta, assim como o padre, que começava a inquietar-se com a ausência da noiva. Marta chegou pouco depois com o seu pequeno Rui, que levava as alianças.
            O dia foi passado sem incidentes, ao contrário da vida da progenitora, pelo menos até então.
           

            Um anjo desceu do céu, salvou-a das garras do mar e dos murros da prostituição. Marta, agradecida, deu a Bruno parte do coração.

Espero que gostem e peço muita desculpa por não vir cá tantas vezes como gostava

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