4 de
novembro de 2005 – 14h30
-Não aguento mais, Bruno!
-Lamento imenso, mas não há mais nada que possamos fazer.
Sei perfeitamente que a vida está difícil para todos, mas neste tipo de
situações, a caridade torna-se menos relevante e a pobreza flutua como uma
singela pétala flutuando no oceano, sem nada que a derrube. Tenho pena, Marta,
mas não podemos continuar a tolerar esta situação.
O sangue começava a fervilhar e todos os maus pensamentos
cobriam agora esta mente assombrada e indefesa. Em câmara lenta, a mão esquerda
desta mãe direccionava-se ao bolso da parte de trás das calças, enquanto que a
outra servia de arma imaginária, apontada ao rosto do jovem funcionário da
sucursal bancária, que ia proclamando poesia à medida que falava com Marta.
A tensão anunciava-se forte naquele instante. Bastava um
gesto, um simples gesto, para que tudo o que até ali fora construído,
desaparecesse por completo. Os olhares cruzavam-se como flechas. As vozes,
retraídas pelo receio, mantinham-se guardadas no abismo.
-Marta, tente acalmar-se. Eu conheço a sua situação e sei
exactamente pelo que está a passar. Pense no seu filho. Será que quer que o seu
filho veja a mãe como uma assassina? Quer deixar o seu filho ao abandono, sem
dar luta? Tenha calma, Marta.
-Sem dar luta?! Você pensa que eu tenho estado fechada em
casa, a ver televisão ou a jogar cartas? Sem dar luta?! Não tenho feito outra
coisa senão lutar pela felicidade do meu filho, mas ao que parece, as minhas
forças não são suficientes. Não é você que não tem nada no frigorífico durante
dias a fio. Não é o senhor administrador que se vê obrigado a prostituir-se
para que o seu filho sorria a cada dia que passa. Não é você que acorda a
chorar e se deita sem mais lágrimas. A minha alma está seca, completamente
destruída! E ainda me pede luta? Eu só não me mato agora mesmo, porque o meu
filho precisa de alguém para cuidar dele, já que o anormal do pai decidiu deixar-me
sozinha... a lutar. E ainda me pede luta, Bruno? Nenhum de vocês aqui presentes
sabe o que é lutar. Vocês julgam sabê-lo, mas a verdade é que as vossas vidas
são de tal forma confortáveis que nunca vos deram a possibilidade de sofrer por
vocês e pelos que vos rodeiam.
As lágrimas e os gaguejos faziam-se agora ver. De
joelhos, Marta continuava a súplica:
-O meu Rui não tem nada para comer. Ele... ele não tem
culpa da mãe que tem. Ele não tem culpa da mãe que tem!!! – gritou,
dirigindo-se à porta da sucursal.
15h45
O corpo já pouco reagia aos estímulos provocados pelos
fortes raios de Sol que se faziam sentir. O olhar, fixando a areia, era o
espelho do precipício. Marta não tinha nada. Nem dinheiro. Nem saúde mental.
Nem vontade de viver. Apenas o filho.
O cenário paradisíaco não a apaziguava. Casa penhorada e
vida na rua fariam parte do seu destino, um destino do qual o seu filho fazia
parte.
Com dez minutos de caminhada, Marta parou
inconscientemente. Olhando para trás, reparou que as suas pegadas eram as
únicas que deformavam as ondulações naturais do areal. O trajecto era idêntico
ao trajecto da sua vida: longo, sinuoso e sem início preciso. Marta sentiu,
naquele instante, que aquele era o ponto final da sua vida. Tudo correu mal.
Porque haveriam as coisas de mudar?
Do bolso, retirou uma foto de Rui e olhou atentamente
para a mesma. Aquele sorriso contagioso fê-la sorrir.
Foi com esse sorriso marcante na sua mente que desatou a
correr em direcção ao mar, robusto por sinal, sem vontade de voltar à última
pegada do trajeto que havia construído momentos antes. Os seus cabelos voavam à
medida que as ondas batiam na areia molhada. A água, gélida, cobria-a agora até
aos joelhos. Tropeçando na força da água, Marta bateu com a cabeça no mar
violento e impiedoso. O silêncio chegara.
10 de novembro de
2005 – 21h20
Rui estava encostado a um muro, o muro de uma casa
abandonada e em ruínas. Acanhado, ia olhando à sua volta, lembrando alguém com
receio da presença humana. O sofrimento estava estampado na sua face, magra e
sem expressão. Rui, a noite e quem estava “dentro” da casa desmoronada eram os
únicos actores da vida naquela rua sombria.
Um mendigo, ainda que bem vestido, aproximava-se de Rui,
que tremia agora desalmadamente. O medo era evidente.
-Olá. – disse o sem-abrigo num tom sorridente.
-Não tenho nada para lhe dar. – respondeu Rui,
ingenuamente.
-Não quero nada de ti. Gostava apenas de saber porque
estás aqui sozinho. Os teus pais?
O filho de Marta, sem saber o que dizer, virou costas à
intimidante figura que se mantinha à sua frente. Um toque no ombro seguiu-se e
Rui não hesitou em virar-se, estimulado, mais uma vez, pelo receio.
-Como é que te chamas?
-Rui. – respondeu, hesitante.
-Muito bem. E o que fazes aqui? Podes contar-me. Eu posso
ajudar-te. Estás perdido?
-Não.
Alguns segundos passaram até que o menino interveio
novamente:
-Baixe-se. – pediu – Baixe-se!
O mendigo seguiu o pedido. Num tom relativamente baixo,
Rui continuou:
-A minha mãe está ali dentro com um homem. Temos vindo
para aqui todos os dias desde que ela voltou para casa de uma viagem que fez.
Não entendo porque é que temos de vir, mas ela diz que não me pode deixar em
casa sozinho, porque é perigoso. Eu fico sempre aqui neste sítio, com medo. Ela
não me deixa ver o que eles estão a fazer. Mas não lhe conte o que eu lhe
disse, está bem?
O sem-abrigo manteve-se com a mesma expressão com que
chegara, como se já soubesse o que se passava.
-Não te preocupes. Eu não lhe digo nada. – pausou – Se eu
te pedir uma coisa, confias em mim?
-Sim.
-Vamos deixar um papel aqui no sítio onde estavas para
que a tua mãe saiba que vieste para minha casa. Depois vai lá buscar-te e vão
para vossa casa. Pode ser?
-Tu tens casa?
23h00
A campaínha tocou. Rui veio à porta, entusiasmado, para
descobrir de quem se tratava. Era Marta.
-Filho! O que é que se passou?
-Mãe, entra. Há um senhor que quer falar contigo.
Marta entrou, duvidando do que se estava a passar.
Repentinamente, o mendigo, já transformado, entrou na sala. Era Bruno.
-Marta, não vou deixar-te continuar com isto. Tentas
matar-te e ainda levas o teu filho para o mundo da prostituição? Não me tinhas
dito que estavas a lutar por uma vida melhor? Achas que é a melhor forma de
fazê-lo? Olha para ele, Marta! – disse, apontando para o pequeno Rui – Olha,
Marta! Achas que ele merece estar ao relento enquanto tu te vendes a preço de
ouro? E a tua dignidade? E as memórias que ele guardará para sempre? Vais parar
com isto! Vais parar com isto imediatamente! Se tens amor próprio, vais
terminar já com este inferno!
Marta sentou-se no sofá, desamparada.
-Vais ficar aqui a dormir até organizares a tua vida.
Sim, porque isto que tu levas não é vida. É um tormento, tanto para ti como
para o teu filho. Vais portanto começar de novo. Eu estou aqui para te ajudar
no que for preciso, não como administrador de um banco, mas como amigo.
Deixa-me ajudar-te...
17 de agosto de
2006
-Mãe, estás mais bonita do que nunca!
Marta sorriu. Não era um sorriso sofredor, mas algo verdadeiro.
Finalmente um sorriso sentido.
A igreja estava pronta, assim como o padre, que começava
a inquietar-se com a ausência da noiva. Marta chegou pouco depois com o seu pequeno
Rui, que levava as alianças.
O dia foi passado sem incidentes, ao contrário da vida da
progenitora, pelo menos até então.
Um anjo desceu do céu, salvou-a das garras do mar e dos
murros da prostituição. Marta, agradecida, deu a Bruno parte do coração.
Espero que gostem e peço muita desculpa por não vir cá tantas vezes como gostava
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